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Andre Vallias

SOMOS TODOS ELES:

o poema onomatotêmico de André Vallias

Eduardo Viveiros de Castro

Tudo começou quando uma porção de gente de outros lugares do Brasil incluiu “Guarani Kaiowá” em seu identificador pessoal nas redes sociais, afirmando assim sua solidariedade política e espiritual com este povo indígena do Mato Grosso do Sul.
Os Kaiowá são um dos três subgrupos em que se divide a grande nação Guarani, espalhada entre o Paraguai, o Brasil, a Argentina e a Bolívia. A situação dos Kaiowá, que habitam um estado arrasado pela monocultura de exportação, é uma das mais terríveis por que passam as minorias étnicas do planeta, implacavelmente ignoradas, quando não deliberadamente exterminadas, pelos entes soberanos nacionais e pelos interesses econômicos internacionais. Os Kaiowá ganharam notoriedade com a divulgação de uma carta indignada, dirigida às autoridades pelos membros de um de seus “acampamentos” de beira de estrada ou fundo de pasto (a isto estão reduzidos). Cansados de serem perseguidos, escorraçados e assassinados por fazendeiros, políticos e outros próceres de nossa brava nação brasileira, pediam que os matassem todos de uma vez antes que aos pouquinhos. Essa carta furou o muro de silêncio hipócrita que costuma impedir que as vozes indígenas sejam ouvidas pelos demais cidadãos do país, e, graças ao circuito informal das redes sociais da internet, acabou tendo que ser divulgada pela mídia convencional.
Quando todos — todos, isto é, todos aqueles que dizemos “todos” como um grito de raiva e de guerra — passaram a se assinar “Fulano Guarani Kaiowá”, era como se o Brasil tivesse descoberto outro Brasil. Um Brasil escondido e emudecido que sempre esteve lá, que estava e que continua lá. Ou melhor, que está aqui, que é daqui. Os Munduruku são daqui. Os Xavantes são nosso parentes. Os Kaiowá somos nós. Os índios não são “nossos índios”. Eles não são “nossos”. Eles são nós. Nós somos eles. Todos nós somos todos eles. Somos outros, como todos. Somos deste outro país, esta terra vasta que se vai devastando, onde ainda ecoam centenas, milhares de gentílicos, etnônimos, nomes de povos, palavras estranhas, gramáticas misteriosas, sons inauditos, sílabas pedregosas mas também ditongos doces, palavras que escondem gentes e línguas de que sequer suspeitávamos os nomes. Nomes que mal sabemos, nomes que nunca ouvimos, mas vamos descobrindo.
O narrador da História do Cerco de Lisboa observava: “Os homens só conseguem dizer o que são se puderem alegar que são outra coisa”. Definição perfeita do que a antropologia chamava de “totemismo”, forma de organização dos povos ditos primitivos caracterizada pela associação onomástica entre um subgrupo humano e uma espécie natural, frequentemente considerada como o antepassado mítico do grupo. Os diferentes coletivos de parentesco ou de residência em que se divide a sociedade são assim distinguidos por nomes, emblemas e práticas ligadas a uma ou mais espécies animais ou vegetais, a astros, elementos da paisagem etc. Sem essas “outras coisas”, os homens não conseguiriam dizer “o que são”, isto é, como são diferentes uns dos outros, e por isso se ligam uns aos outros. No fim das contas, todo nome é sempre isso, uma alegação que pede uma ligação, o apelo a uma outra coisa (do) que se é. Nomear é repetir o ser com uma diferença. Este é o método do totem. Não saia ao mato sem um.
Os índios do noroeste da América do Norte, artistas refinadíssimos, esculpiam mastros monumentais de madeira nobre, onde dispunham verticalmente as figuras de seus animais e espíritos totêmicos. Na linguagem corrente, costuma-se usar a palavra “totem” para designar estes mastros, que eram verdadeiras listas icônicas dos nomes do grupo. O poema de André Vallias é isso — um totem. Um poema que diz o que somos, quem somos, nossos nomes, os nomes de nossos “antepassados” míticos, aqueles seres totêmicos que nos distinguem no desconcerto das nações. Uma lista sempre inacabada, uma seqüência infinda de nomes - nomes que surgem e nomes que desaparecem, nomes inventados, nomes sonhados, nomes equivocados, nomes dados por outrem, nomes de um na língua de outro, às vezes meros garranchos nos livros-registros do Estado, ganchos onde os brancos penduram sua ignorância e sua arrogância. Meros nomes. Entretanto, como dizem os Daribi da Nova Guiné (apud Roy Wagner): “Um homem é uma coisa de nada. Mas quando se ouve seu nome, ele se torna algo grande”.
Nomes dos povos, nomes dos índios, nomes de nosso tios. Somos todos como Antônio de Jesus, aliás Tonho Tigreiro, aliás Macuncôzo, aliás Bacuriquepa, o onceiro de “Meu Tio, o Iauaretê“, o conto espantoso de Guimarães Rosa. O mestiço de branco com índia que, depois de passar a vida perseguindo o animal totêmico de seu povo, o Jaguar, volta para os seus, para seu estado “selvagem”, renega o pai branco, desvira branco e vira onça, isto é, revira índio. Seu devir-onça é a maneira necessária de atualizar um ser-índio desde já impossível. Assume assim o nome da mãe, o nome do tio materno, o célebre “irmão da mãe”, cuja importância em todo sistema conhecido de parentesco foi demonstrada pela antropologia. Estamos aqui, nesta reivindicação de aliança e de semelhança com o irmão canibal da mãe, no matriarcado antropofágico profetizado por Oswald de Andrade; mas aqui sob a forma de tragédia. A lição do conto de Rosa é sombria: mestiço que volta a ser índio, branco mata. E nem lembra o nome. Como se “índio” já fosse nome o bastante.
Todo povo é um nome. Todo nome é um meme. Uma memória sonora que não vai-se embora. Que este totem de André Vallias em forma de onomatopoema – um anti-túmulo, em sua orgulhosa verticalidade, como um signo do que sempre vive – possa dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Da nossa, de todas as tribos.


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